sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Prossima fermata: Bologna



Bolonha, 9 de Outubro de 2011

Bolonha é homem. É serpenteada de curvas e enigmática nos seus trejeitos de fêmea , mas respira mácula masculina. É fria, mesmo quando o sol ocupa toda a Piazza Maggiore, é fugidia, mesmo quando o roteiro parece domando. É indomável, porque é como quem a percorre. Homens imponentes toldados por vistosos casacos de genuína pele e mulheres impecavelmente vestidas, maquilhadas com rigores de 'haute couture'. Movem-se com imponência, bebem 'spritz' e deixam-se banhar pelo tímido sol enquanto folheiam o Corriere della Sera.

Hoje é Sábado, um daqueles habituais para os milhares que ocupam toda a Via dell'Indipendenza. Eles coleccionavam sacos de compras, enquanto eu tentava mover-me no meio do frenesim urbano. Seguia não sei para onde, mas eles, todos sem excepção, pareciam conhecer cada centímetros daquela calçada cansada de tantos passos. Eu, por mim, não me importaria de ter um abraço, mas, à falta de braços que me envolvessem, encontrei refúgio numa barraca repleta de recordações de cinema. Os instantâneos a preto e branco ocupavam todo o espaço do carrinho dos sonhos, os filmes, esses, perteciam a Fellini, Rossellini ou Vittorio de Sica. "Já não se fazem filmes assim", diz o vendedor, como que adivinhando os meus pensamentos. Fotos comprei-lhe duas, com destinatários precisos, ele ofereceu-me um postal e meia hora de conversa, umas vezes animada pela magia do cinema, outras enublada pela "crisi"...que me parece,, mais doque uma simples palavra, uma verdadeira síndrome civilazional. Antes de partir diz-me: "Deves é vir morar para Bolonha!". Como se fosse preciso convencer-me de algo que já tinha percebido mal o o comboio me avisou Prossima fermata: Bologna! Às vezes, é só preciso uma voz com tom maquinal para indicar o caminho.

Bolonha é a cidade com mais pórticos em todo o mundo. Assim o dizem as brochuras turísticas e eu acredito a cada minuto que passa. Bolonha respira preto e branco na sensualidade lasciva dos seus pórticos banhados pelo sol de fim de tarde.

Chegar à Piazza Maggiore é envolver-se num mar de gente. Há os turistas, muitos, que rodeiam os artistas. Há os activistas que portam bandeiras. Estranhamente, numa única tarde, há mais emblemas empunhados em redor de Neptuno do que o Parlamento italiano faria antever. São os protestantes anti-TAV, os anti-crise, os anti-dívida e aqueles que recordam os mortos. E há os outros, que lêem o Corriere della Sera embrulhados no fausto que consomem.

A noite cai. Procuro um alerbergue, uma cerveja e um poiso tranquilo para receber a bruma. Em Bolonha encontra-se sempre mais do que aquilo que se procura. Descobre-me o Hassan. A história de um guarda-redes marroquino que veio para a Europa "dar o salto". Recebeu-o a série C italiana. Nesta noite recebi-o também eu. Com mais cervejas do que histórias para contar, Hassan repete mais de quatro vezes a mesma história, falamos de futebol, do FCP e do Falcão. No futebol toda a gente se entende. Diz-me ele que já há muito que não vinha a Bolonha pela noite, mas que hoje às quatro da tarde comprara 12 cervejas, consumira oito em percas horas, e lançou-se à noite. "Para te conhecer a ti", diz-me ele assim, como que no meio da sua embriaguez.

De regresso ao hotel, esperava-me o Bob, o recepcionista. Tudo nele era dedicado e profissional, o tom sempre cortês. A noite estava fria e bebemos capuccinos na sala de pequeno-almoço. Fala-me dele e eu um pouco de mim. "Bolonha é uma terra de oportunidades", remata. Para me convencer de vez entramos numa cozinha e abre a escotilha onde se vê um pequeno canal. Bolonha é também água!

Adormecida entre cervejas e capuccinos, Domingo começa já a meio. Corro para a cidade, porque o sol não demoraria a deitar-se novamente. É Domingo, mas Bolonha continua imersa num intenso mar de gente. Incessante. Atrevo-me a percorrer as sinuosas vias, sigo a rota de igrejas devolutas, dos imponentes edifícios da universidade e perco-me nos pórticos enebriantes. As ruas estão vazias, os edifícios entregues à voragem do tempo e há palavras de ordem traçadas a vermelho vivo nas paredes. Oiço campaínhas de bicicletas e sigo por entre o infindável cenário de pórticos e portadas. Refaço o caminho de regresso à estação. Para trás ficam os antiquários, o mercado de frutas vistosas, o vermelho terra imenso dos prédios, as torres imponentes que parecem só conhecer o infinito, os olhares que se entrelaçam só para juntarem amantes desencontrados.


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Dia 1 - A cidade finita

Modena pela noite é terra de ninguém, mais do que pessoas ondulam bicicletas (coroadas de belos cestos de vime), mais do que palavras trocam-se urros, mais do que olhares, desconfiança.

A caminho de Modena, descobre-se um visitante português. Engenheiro do município, ar informal e munido de toda a parafernália essencial à viagem: mapa de Modena, comprovativo da marcação de hotel e com domínio perfeito das respectivas distâncias para todas as cidades a visitar nas redondezas. Perante a noite indómita, deixei-me acompanhar pelas suas certezas. Eu que acabara de chegar com quatro vezes mais bagagem, mas sem qualquer guia organizado. O mistério corporizado por Modena desvanecia-se em cada esquina. A cidade era afinal finita.

O engenheiro que vinha em "visita de médico" para um congresso que se realizava por esses dias encontrou o seu posto, eu prossegui a jornada por entre as ruas abandonadas. Os trinta quilos às costas obrigaram-me a repousar no primeiro albergue que me aceitou. O recepcionsista, homem eficaz para a tarefa mas de poucas palavras, passou-me um mapa da cidade...Modena, finalmente, nas minhas mãos.

Quando tudo parecia condizer com a calmaria que dominava Modena, preparada para me entregar a lençóis lavados, nada do telemóvel. A minha única ligação com o mundo na altura abandonada à sua sorte no aerobus. Lancei-me à estrada. Aos primeiros metros de penumbra sucedeu-se a efervescência dos 'tiffosi' italianos, que rodeavam o estádio do Modena (modesta equipa da série B), dos polícias que vetavam a rua a qualquer tipo de tráfego e controlavam os corações mais sobreaquecidos pelo álcool.

Eu, só, rodeava a inóspita Autostazione de Modena. Cheirava a lixo, a vidas votadas ao abandono. Iluminada pelo foco de luz mais persistente deixei-me ficar assim. À espera. Passeavam-se algumas bicicletas, a maioria delas conduzidas por emigrantes magrebinos. Passavam, olhavam, mas o rigor da noite era mais forte. Partilhei ainda um cigarro com um qualquer italiano que se juntou a mim à espera do seu filho. Disse-me que chegaria de autocarro, vindo de não sei onde, fosse qual fosse a sua história.

Tocam as 23h30 e o aerobus chega. E com ele o telemóvel que me aguardava. Com a companhia virtual das centenas de contactos que contam parágrafos inteiros da minha vida, firmei-me perante o estádio e a meia dúzia de vozes mais acaloradas que agitavam a rua. Entrei no único bar aberto, bebi a primeira cerveja em Modena. A equipa havia perdido na sua própria casa, "já vão oito jogos sem vencer", confessa o empregado adolecente. No caminho de regresso tudo me parecia mais familiar.
Nada que cerveja e futebol não resolvam.